sábado, 10 de setembro de 2011

Loucura, morte, vida, realidade?

“Tenho que contar uma coisa, um segredo. Não pensava em partilhar isso desde já, não pensava em partilhar isso em momento algum, na verdade, mas a situação pede por tal atitude; assim, caso alguém encontre meu corpo inerte ao chão ladeado de sangue e uma navalha ou pendurado por uma corda com o pescoço retorcido em um ângulo obtuso, saberá o motivo que teria me levado a tamanha desventura. Primeiramente, devo dizer que não sou um louco, embora o que pretendo dizer possa causar essa impressão; devo ainda avisar que é algo arrepiante, anormal, irracional até,... mas é a verdade, e peço desculpas se tiver suas estimativas estilhaçadas, mas vamos lá: eu vejo espíritos!
Quero dizer, não se trata apenas de vê-los. Não, não é só isso, é bem pior. Eles me perseguem, invadem a minha casa e o meu espaço, me importunam e me vigiam o tempo todo. São como espiões, só que sem um pingo de discrição. Sinto seus olhos grudados em mim, não importa aonde eu vá. Não há paz.
Paz; é até estranho falar assim, acusar os espíritos, que deviam estar descansando em paz, de tirar a minha. Pode rir, mas se os tivesse à sua volta te cutucando e te puxando, não o faria. Essas projeções descoradas de defuntos são infernais, isso sim. Vai ver é por isso que estão aqui, foram barrados nas portarias do inferno.
Mas não foi assim desde o começo – na verdade, referir-se àquilo como o começo chega a ser maligno. O que quero dizer é que, depois daquele acontecimento, minha vida virou de cabeça para baixo – e eu parabenizaria qualquer um que mantivesse tudo sob controle depois de passar pelo que passei.
Não pretendo mencionar pelo que exatamente eu passei, e vou me referir a isso simplesmente como o ‘acontecimento’, para não definir do que se trata, mas garanto que realmente não foi algo agradável; a morte nunca o é, nem mesmo quando admiravelmente retratada por um dos geniosos boêmios do spleen; e assistir a pessoas serem desmembradas, reduzidas a pedaços de carne e ossos e poças de sangue não chega nem perto de ser agradável, tampouco descrevê-lo o é.
Talvez tenha sido isso que me fizera ter essa capacidade, e se digo capacidade é porque não ouso chamar de dom – trata-se mais de uma maldição. Talvez a morte seja uma espécie de portal e o modo de morrer seria nada além daquilo que empurra nossas almas contra esse portal; nesse caso, estar tão próximo da morte, como eu estive, tenha me aproximado desse portal de tal forma que se estabeleceu alguma conexão a mim; rasgou-se o véu que separa vivos e mortos, e estes agora me vêem e me procuram como uma forma de conexão ao mundo que tanto amam e ao qual não mais podem pertencer.
Meu tempo é curto, então enfatizarei somente o crucial. Começando pelo primeiro episódio, o marco inicial de tudo isso. Estava eu em minha casa, e não poderia ter sido em nenhum outro lugar, já que eu não mais saíra da mesma desde a minha quase travessia pelo portal guardado pela senhora esquelética acompanhada de sua gadanha. Eu estava na sala, dividindo o sofá com a caixa de uma das muitas pizzas que pa6ssaram a ser a base do meu cardápio diário, em frente à televisão, vendo o noticiário, mas sem prestar a mínima atenção. Minha mente vagava, não imagino por onde, quando foi bruscamente puxada de volta à realidade através da enorme surpresa que me acometeu quando meus olhos depararam-se, em um canto da sala onde tinham acabado de pousar instantes antes, e onde haviam visto nada mais que vazio, com a pálida e diminuta figura de uma linda garotinha com seus 7 ou 8 anos de idade, me fitando quietamente. Ela não esboçou nenhuma reação por vários instantes, até que sorriu para mim e, antes que eu pudesse reagir de alguma forma, levantou-se e correu porta afora. Corri atrás dela, recuperando, repentina e estranhamente, o controle do meu corpo. Mas quando atravessei a porta, que por sinal se encontrava fechada, não encontrei nada.
Naquele dia fui deitar cedo, mas demorei a dormir. Não conseguia tirar a figura da criança de minha cabeça, nem me forcei a tentar, sinceramente. Dormi pensando que teria sofrido de alucinações, mas estava enganado, como descobriria mais tarde. Na manhã seguinte acordei e lá estava a garota, fitando-me imóvel com seus grandes olhos castanhos. Quando percebeu que eu acordara, levantou-se calmamente e saiu do quarto, e eu mais uma vez agira tardiamente em segui-la, não a encontrando em local algum.
Muitas foram as vezes que a garotinha visitou-me nos dias que se seguiram, e parecera ter contado aos amigos a novidade de que eu podia vê-la, porque outros como ela, muitos outros, apareceram. Eu cheguei a pensar que estivesse louco, que meu médico devia ter deixado passar despercebido algum tumor no meu cérebro – mas não estava em condições de visitar um médico ou psiquiatra, nem com vontade de fazê-lo. Aos poucos me acostumei às visitas inesperadas, tanto que nem me surpreendia mais, afinal, eram meras ilusões que meu subconsciente disfuncional passou a criar como passatempo.
O estágio seguinte foi aquele que me causou maior assombro, quando começaram a tentar se comunicar comigo. Abriam as bocas para falar, mas não saía nada além de um gemido lamurioso e, insatisfeitos por eu não entendê-los ou por acharem que eu os ignorava, avançavam sobre mim, seguravam-me e arregalavam os olhos, plangentes por auxílio. Foi algo assustador, e ainda me arrepia lembrar as primeiras ‘experiências’ pelas quais passei. Afinal, alucinações visuais eram aceitáveis, mas auditivas e tácteis, se é que existiam, eram muito inacreditáveis. E foi quando passou pela minha cabeça uma nova teoria, a qual, inexplicavelmente, meu cérebro se agarrou com tamanha força que me obrigou a aceitá-la, e sobre a qual se baseia meu relato.
Depois de uma semana, eu já estava ficando realmente louco. As visões, agora promovidas a espíritos, não paravam de chegar. Aonde eu ia, havia algum. Eu já arriscava, algumas vezes, a sair às ruas, bem de manhã, quando ainda não havia ninguém, para caminhar. Não porque eu estava pensando na minha saúde, mas porque eu esperava que ali fosse ter sossego. Foi numa dessas caminhadas, em um dia um pouco mais ensolarado, apesar da chuva do dia anterior, em um parque não muito longe de casa, que avistei novamente a garotinha. Havia dias ela não aparecia, e achei estranho vê-la por ali. Mais estranho ainda foi a minha reação; ao perceber que ela não me olhava, como sempre fazia, tive o impulso de me aproximar dela.
Parei há uns dois metros de distância, sem saber o que fazer. E mais uma vez me surpreendi quando, sem delongas, ela me olhou e, pela primeira vez, disse algo:
– Sente. – tinha uma voz bela, aguda, mas muito límpida para a sua idade. Foi uma única palavra, mas eu sabia que não era algo comum, tamanha a dificuldade mostrada pelos outros fantasmas ao tentarem se comunicar. E exatamente por isso eu soube que algo maior estava prestes a acontecer.
Sentei-me, sem dizer nada, e aguardei. Alguns minutos se passaram sem que nenhum de nós dissesse nada, ela admirando a paisagem, eu tentando perceber para onde ela olhava, o vento cortante de inverno sibilando em meus ouvidos, em assopros quase regulares; percebi que, estranhamente, não estava sentindo frio. Mais uma vez, foi ela quem falou:
– Linda paisagem, não?
– É. – concordei indiferente.
– Sinto falta disso.
– Disso o que? – perguntei, agora curioso. Do que ela poderia sentir falta ali?
– Do vento, do cheiro da grama molhada, de tudo. Sinto falta de sentir. Você não?
– Como assim? Não posso sentir falta de algo que não perdi.
– Você ainda não percebeu, não é? – sua voz havia mudado para um tom mais solene. Era estranho como uma criança podia falar daquele modo. Eu me ative a sua voz, tentando não pensar no significado que aquela pergunta implicava.
– O que eu não percebi?
Ela não respondeu, o que provavelmente me deixou mais inquieto do que se o tivesse feito. Como não quis repetir a pergunta, resolvi mudar um pouco o caminho da conversa.
– Como você morreu? Quero dizer, você e todas aquelas pessoas que têm aparecido para mim, estão todos mortos, não estão?
Ela demorou um pouco a responder, e eu pensei tê-la visto estremecer, ou tremeluzir, quando eu perguntei, o que me fez pensar há quanto tempo ela havia falecido.
– Sim, estamos. – foi só o que ela disse, pulando a primeira pergunta. – Mas a questão não é essa, e você sabe disso.
– Eu sei?
– Sim, só não quer admitir.
– E qual seria a questão, então?
– Seria: como você morreu?
Eu não respondi. Não perguntei. Não disse mais nada, nem ela o fez. Fiquei parado. Depois de vários minutos, me levantei e saí andando, na direção oposta à minha casa. Não pensei em nada também. Simplesmente caminhei. Ela não me seguiu, não reapareceu na minha frente, não sumiu, simplesmente me observou partir, embora eu não tenha olhado para trás para conferir, mas sei disso. De repente, e contra a minha vontade, imagens começaram a vir a minha cabeça. Fazia sentido, afinal; desde o ‘acontecimento’, eu não voltara ao trabalho, não conversara com mais ninguém que conhecia, não havia feito nada que me provasse estar vivo. Não, é claro que eu fizera; afinal, de que outra forma eu teria podido usar o telefone, assistir à televisão, comer pizzas. Com certeza um morto não conseguiria fazer isso, a menos que eu não tivesse feito nada daquilo. Não fazia sentido algum, nada mais fazia.
Mas eu não iria conferir. Não havia vestígio de coragem em mim para que eu fosse a um cemitério procurar por uma cova com meu nome; à casa de um amigo para ver se, ao apertar-lhe a mão, esta atravessaria a minha; nem mesmo para voltar para casa, pesquisar na internet sobre os óbitos do último mês.
Tenho algo diferente em mente. Algo que vai me provar a minha real condição, o que não há de fazer muita diferença no final das contas. No início desse relato eu disse que talvez alguém encontrasse meu corpo inerte ou dependurado, junto a uma navalha ou a uma corda. Optei por algo mais clássico. Já está escuro, e venta muito forte aqui, mas só sei pelo movimento desordenado da bandeira no estandarte ao meu lado, pois não consigo sentir o vento; deve estar frio também. Espero que encontrem esse papel no meu bolso, junto ao que restar do meu corpo depois do impacto de 23 andares do qual um único passo me separa.
Isso é, se eu tiver um corpo.”
Breno Jorge Félix.

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