quarta-feira, 23 de março de 2011

Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo

Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo

Fonte:
AZEVEDO, Álvares de.  Noite na taverna.  3.ed.  Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1988.

Texto proveniente de:
A Literutra Brasileira – O seu amigo na Internet.
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Noite na Taverna
Álvares de Azevedo


MACÁRIO

Onde me levas?

SATAN

A uma orgia. Vais ler uma página da vida, cheia de sangue e de vinho—que importa?

MACÁRIO

Eu vejo‑os. É uma sala fumacenta. A roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem‑se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas Que noite!
NOITE NA TAVERNA

How now, Horatio? you tremble, and look pale. Is not this something more than fantasy? What think you on's?

Hamlet. Ato I

JOB STERN

UMA NOITE DO SÉCULO

.

Bebamos! nem um canto de saudade! Morrem na embriaguez da vida as cores! Que importam sonhos, ilusões desfeitas? Fenecem como as flores!

José Bonifácio

— Silêncio! moços!! acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia??

—Cala‑te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold—o loiro—cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tieck, que musica mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das tachas?

—És um louco, Bertram! não e a lua que lá vai macilenta: e o relâmpago que passe e ri de escárnio as agonies do povo que morre, aos soluços que seguem as mortalhas do cólera!

—O cólera! e que importa? Não há por ora vida bastante nas veias do homem? não borbulha a febre ainda as ondas do vinho? não reluz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna do crânio?

—Vinho! vinho! Não vês que as taças estão vazias bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?

—E o Fichtismo na embriguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez!

—Oh! vazio meu copo esta vazio! Olá taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?

—O vinho acabou‑se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de sodas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de sodas as nossas esperanças que desbotaram, uma ultima saúde! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo e a imagem do idealismo, e o tran­sunto de tudo quanto ha mais vaporoso naquele espiri­tualismo que nos fala da imortalidade da alma! e pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma!

—Bravo! bravo!

Um urrah tríplice respondeu ao moco meio ébrio.

Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrasta­vam‑lhe com as faces de moco as rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos pra­teava‑se‑lhe o reflexo das luzes do festim. Falou:

—Calai‑vos, malditos! a imortalidade da alma? po­bres doidos! e porque a alma e bela, porque não conce­beis que esse ideal posse tornar‑se em loco e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um cadáver? E então não du­vidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam abrires, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que também não so­nhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! não mil vezes! a alma não e, como a lua, sempre moca, nua e bela em sue virgindade eterna! a vida não e mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar‑se no cálice da flor ou na fronte da
criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência de Platão foi talvez pare o coração de um ser impuro. Pôr isso eu vo‑lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem! talvez eu creia um pouco:—pelo Platonismo, não!

—Solfieri! es um insensato! o materialismo e árido como o deserto, e escuro como um túmulo! A nos fron­tes queimadas pelo normaço do sol da vida a nos sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crianças frias! A nós os sonhos do espiritualismo!

—Archibald! deveras, que e um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o es­pirito puro ajoelhado no seu manto argênteo, num ocea­no de aromas e luzes! Ilusões! a realidade e a febre do libertino, a taça na mão, a lascívia nos lábios e a mulher seminua, tremula e palpitante sobre os joelhos.

—Blasfêmia—e não crês em mais nada: teu ce­ticismo derribou sodas as estatuas do teu templo, mesmo a de Deus?

—Deus! crer em Deus! sim como o grito intimo o revela nas horas frias do medo—nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar úmida por nos! Na jangada do naufrago, no cadafalso, no deserto —sempre banhado do suor frio—do terror e que vem a crença em Deus! —Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem! Mas se en­tendeis por ele os ídolos que os homens ergueram banha­dos de sangue, e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore de há cinco mil anos! não credo nele!

—E os livros santos?

—Miséria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: ai ha folhas inspiradas pela natureza ardente daquela terra como nem Homero as sonhou—como a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos do pas­sado nunca mais lembrara! Mas quando me falarem em verdades religiosas, em visões santas, nos desvarios da­quele povo estúpido—eu vos direi—miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo aquilo e falso— mentiram como as miragens do deserto!

—Estas ébrio, Johann! O ateísmo e a insânia como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo de Spinoza o judeu, e o crente de Malebranche nos seus sonhos da visão em Deus. A verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem e o prazer. Dai vede que e o elemento sensível quem domina. E pois ergamo‑nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciência e falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher.

—Bem! muito bem! e um toast de respeito!

—Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam‑no: Ao Deus Pan da natureza, aquele que a antiguidade chamou Baeo o filho das coxas de um deus e do amor de uma mulher, e que nos chamamos me­lhor pelo seu nome—o vinho.

—Ao vinho! ao vinho!

Os copos cairam vazios na mesa.

—Agora ouvi‑me, senhores! entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejaste, o que nos cabe e uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantás­ticos—como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg!

—Uma historia medonha, não Archibald?—falou um moco pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois bem, dir‑vos‑ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não e um conto, e uma lembrança do passado.

—Solfieri! Solfieri! ai vens com teus sonhos!

—Conta!

Solfieri falou: os mais fizeram silêncio
II

SOLFIERI

Yet one kiss on your pale clay


And those lips once so warm beart! my bears! my bears!

BYRON—Cain

Sabeis‑lo. Roma e a cidade do fanatismo e da perdição: na
alcove do sacerdote dorme a gosto a amásia,
no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido. É um
requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio a
convulsão do amor, o beijo lascivo a embriaguez da crença!
Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela
no verão pôr aquele céu morno, o fresco das águas se
exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia
bela. Eu passeava a sós pela ponte de As luzes se apa­garam uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas,
e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma
sombra de mulher apareceu numa janela solitária e es­
cura. Era uma forma branca.—A face daquela mulher
era como a de uma estátua pálida a lua. Pelas faces dela,
como gotas de uma taça caída,, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

Depois o canto calou‑se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu a ninguém—saiu. Eu segui‑a.

A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira‑se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem‑me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de órfão..

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.

Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou‑se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei‑me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão—as urzes, as cicutas do campo santo estavam quebradas junto a uma cruz.

O frio da noite, aquele sono dormido a chuva, causaram‑me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...

Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão.
       
        Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Barbara. Dei um último olhar áquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia volutuosa do amor. —Saí.. —Não sei se a noite era límpida ou negra—sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera ate a última gota o vinho do deleite.

Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri‑o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. . —Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo.

Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, "do cadáver sem cabeça e o homem sem coração" como a conta Brantôme?Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei‑a no colo. Preguei‑lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei‑lhe o sudário, despi‑lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era uma forma puríssima.. Meus sonhos nunca me tinham evocado uma estatua tão perfeita. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava‑lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso—cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já froixa nas janelas. Àquele calor de meu peito, a febre de meus lábios, a convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar‑se. Súbito abriu os olhos empanados. —Luz sombria alumiou‑os como a de uma estrela entre névoa—, apertou‑me em seus braços, um suspiro ondeou‑lhe nos beiços azulados. Não era já a  um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar‑me daquele aperto do peito dela. Nesse instante ela acordou…

Nunca ouvistes falar da catalepsia? E um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem‑se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelar a vida!

A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei‑me na capa e tomei‑a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar‑me da porta topei num corpo; abaixei‑me—olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta .

Saí.—Ao passar a praça encontrei uma patrulha —Que levas aí?

A noite era muito alta—talvez me cressem um ladrão.

—E minha mulher que vai desmaiada

—Uma mulher! Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de cadáveres?

Um guarda aproximou‑se. Tocou‑lhe a fronte—era fria.

—E uma defunta

Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno.—Era a vida ainda.

—Vede, disse eu.

O guarda chegou‑lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo. . o punhal já estava nu em minhas mãos frias

—Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.

Caminhei.—Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo: e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem‑na gritar e acudissem, corri com mais esforço. .

Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.

Fechei a moça no meu quarto—e abri.

Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda.

A turvação da embriaguez fez que não notassem minha. ausência.

Quando entrei no quarto da moça vi‑a erguida. Ria de um rir convulso como a insânia,, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi‑la.

Dois dias e duas noites levou ela de febre assim Não houve como sanar‑lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

A noite sai—fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera—e paguei‑lhe uma estátua dessa virgem.

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo.—Tomei‑a então pela última vez nos braços, apertei‑a a meu peito muda e fria, beijei‑a e cobri‑a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito.—Fechei‑a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.

Um ano—noite a noite—dormi sobre as lajes que a cobriam Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. —Paguei‑lha e paguei o segredo

Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?

—E quem era essa mulher, Solfieri?

—Quem era? seu nome?

—Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem ha dele mister por escrever‑lho na lousa?

Solfieri encheu uma taça—Bebeu‑a.—Ia erguerse da mesa quando um dos convivas tomou‑o pelo braço.

—Solfieri, não e um conto isso tudo?

—Pelo inferno que não! por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que era a bela Messalina das ruas—pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra —eu vô‑lo juro—guardei‑lhe como amuleto a capela de defunta.—Ei‑la!

Abriu a camisa, e viram‑lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

—Vede‑la murcha e seca como o crânio dela!

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